quarta-feira, dezembro 26

A descida ao inferno nas escolas

O pesadelo que afoga as escolas em burocracia está comentado neste artigo do Guardian.

Primeiro foram as escolas básicas e secundárias, mas o polvo já se instalou também nas universidades. Tudo o que é possível inventar para desviar os professores do acto de ensinar e de fazer investigação, de certeza que não fica na gaveta. Com nobres objectivos - a defesa da qualidade e da avaliação do "desempenho" - a ditadura democrática dos gabinetes que diariamente requerem relatórios e ficheiros está para durar, com o patrocínio distante, neutro mas certamente embevecido do Microsoft Office. Até ao dia em que não haverá nada para relatar, pois todo o tempo disponível foi consumido a compor e formatar.

A outra venda de natal

Os últimos dias têm sido ricos para discussão de questões morais em França. Depois do assunto Depardieu, há agora choque de pontos de vista, nos comentários de leitores do Figaro, sobre a putativa cupidez dos que vendem os presentes de natal indesejados. É a substituição dos sentimentos pelo comércio. Minable, dizem alguns.

O Observador observado

Parece não estar encerrado o episódio de stand-up comedy em que Artur Baptista Silva emerge à fama súbita e logo desliza ao estado de réprobo.

Ao muito que se escreveu e comentou sobre o engraçado acontecimento acrescento só duas reflexões: 1) os jornalistas ocupados a desculpar-se de terem caido nisto e naquilo (como se fosse a primeira vez) não tentaram logo saber onde está o artista, nem indagar das suas motivações. 2) uma parte da opinião publicada defende que o importante é o conteúdo e não o mensageiro. Em abstracto, concordo. Mas quando o conteúdo é em substância decorrente de opinião ou ideologia e não o relato de factos, justifica-se o cepticismo. Sobretudo por elementar prudência: se uma pessoa mente sobre o seu curriculum e aldraba dados biográficos, que confiança merece o resto do discurso?

segunda-feira, novembro 19

O massacre das palavras ditas

As luminárias de gabinete que teceram o recente e inútil acordo ortográfico não cuidaram de prever as consequências mais gravosas das regras que inventaram. Descarto já a ocultação de conexões de significado entre vocábulos com raiz comum. Refiro-me ao efeito da grafia na corrupção da pronúncia.

Sob a capa da simplificação, abre-se o caminho à deterioração do português falado. Parece apenas diletante propôr a queda do c e do p quando "não se pronunciam" (dizem eles, esquecendo que estas consoantes exercem um efeito de acentuação significativo e em alguns casos se pronunciam de modo subtil). Os iluminados proponentes esqueceram que não é o mesmo usar uma ou outra grafia em Portugal ou no Brasil. Lá, eles sempre disseram e dirão tèlèfone, enquanto aqui, sobretudo na região de Lisboa, onde se fala o pior português do mundo, dizemos tlfone. A nossa tendência vocalicida fará com que, num futuro breve, ado(p)ção soe como adução, rece(p)ção como recessão... os exemplos são inúmeros. Para além do surgimento de uma bolha de homófonas, assistiremos ao emudecimento do "e" ou do "a" em palavras como infeção ou inação. Far-nos-emos entender cada vez pior.

Quero ressalvar apesar de tudo que o acordo é muito adequado à escrita de sms.

domingo, setembro 30

Post amargo e irritado

Para que serve? para "socializar", para "integrar". Qual é o espanto? Todos estamos habituados a essa rotina necessária: quando somos apresentados a pessoas com quem vamos provavelmente partilhar espaço ou actividades, é natural esperar que numa fase inicial elas nos obriguem a beber vinagre (se não forem muito mazinhas)  e a limpar-lhes a retrete, a fim de facilitar a amizade e a camaradagem no dia a dia.

É da praxe que no início do ano lectivo há notícias de estudantes atingidos, por vezes de forma violenta, pelas consequências dessa actividade inominável, tão estúpida e pirosa como o nome que lhe dão. Já se viu que as escolas não têm capacidade de refrear a prática. As claques de cultores falam dela como "tradição", mas em vez disso deviam dizer "importação" de mau gosto. Em Lisboa a praxe é moda recente, e nas universidades de província tem de o ser por força, porque todas elas são recentes. A instituição de uma longa época de brincadeira estudantil que se estende pelos primeiros meses do ano escolar é contemporânea da massificação descontrolada do ensino superior. A degradação de qualidade não é o único dano colateral do processo: ele arrastou a deterioração do nexo entre universidade e cultura ou élites. As manifestações inocentes desta quebra são a adopção maciça do trajo ridículo com que a estudantada se passeianas aulas e pelas ruas, e a presença dos Quins Barreiros deste país nas festas académicas. No seu pior, a estupidez afecta a saúde ou a vida.

O silêncio dos ausentes

Na saudação de Mariano Rajoy aos que não se tinham manifestado em Neptuno encontrou Pedro Almodóvar inspiração para uma resposta vigorosa e dissertar sobre a teoria das múltiplas narrativas e as manipulações a que as imagens se prestam.

Também as palavras também se vergam às convicções do narrador. Acusando Rajoy de se apropriar do seu silêncio, Almodóvar apodera-se do silêncio dos outros ausentes; certamente será apoiado por muitos, mas também não será pequena a pateada. O potencial da narração caleidoscópica tem sido bem explorado na literatura e no cinema, e o seu fascínio só pode vir, de facto, da omnipresença da ambiguidade no mundo real. Se o narrador omnisciente pode ser insatisfatório por boas razões, não pode Almodóvar esquecer que o seu ponto de vista é apenas mais um.  Se "Cualquier realidad puede significar algo o lo contrario, según los intereses de quien la narre", também qualquer um pode interrogar-se sobre os interesses que movem Almodóvar (que, repare-se, descobre por via deste episódio os malefícios da televisão pública) na criação da sua realidadezinha em palavras. Todos podemos permitir-nos a arrogância de acreditar que os calados estão connosco.

quinta-feira, setembro 6

Crise da Economia como área de conhecimento

Um breve artigo de Howard Davies, ex-director da LSE e primeiro presidente do FSA, levanta uma discussão aparentemente informada, com muitas palmas e pateada também. A controvérsia ilustra a desconfiança que alastra, mesmo entre os entendidos, sobre os caminhos da Economia e dos estudos financeiros. Até que ponto os modelos matemáticos, e os métodos importados da Física e da Engenharia, constituem um contributo de valor para construir uma ciência da economia? Não teremos andado a iludir-nos e a perder tempo, que melhor teria sido utilizado estudando bem a história, a sociologia e procurando compreender como agem as instituições? A resolução dos problemas com que nos deparamos dependem mais de decisões políticas ou de conhecer o comportamento das soluções de um problema em análise estocástica?

Não há consenso sobre a mínima coisa. Se muitos criticam a ausência de previsão da crise, logo outros clamam que houve quem previsse, sim senhor. Mas uns terceiros põem em causa o valor da previsão em face dos modelos disponíveis: quem acertou, acertou só por ser um pessimista incorrigível. Mas também estes não ficam sem resposta: os pessimistas foram ignorados interesse das instituições, tanto financeiras como reguladoras.

A matematização de uma área do conhecimento é um requisito maior para lhe conferir credibilidade e carácter de "ciência". Mas os modelos matemáticos têm um valor limitado e devem ser lidos com prudência quando estão em jogo comportamentos de pessoas e instituições de grande complexidade e que podem fugir aos axiomas da teoria.

Em vez de castigar a incipiente "ciência" económica e financeira, pode ser mais útil subir a fasquia de exigência aos dirigentes políticos e aos reguladores e perguntar, afinal, para que servem estes. E não perder de vista alguns princípios de bom senso no planeamento a longo prazo. Por exemplo, que o dinheiro não nasce do ar nem das leis. Que não é razoável gastar mais do que aquilo que é expectável que venhamos a ter. Ou que quando os governos privam os cidadãos de uma parte importante da riqueza para realizar investimentos que a muito poucos servem, ou a produzir o que só pode ser comprado à força, é provável que a factura venha a ser dolorosa para a maioria.

quarta-feira, setembro 5

Isto é notícia ou simples divulgação de um manifesto?

Quando é que os redactores aprendem a redigir? Em vez de "é uma das mais recentes figuras da sociedade portuguesa a subscrever o manifesto " deveria estar "é uma das figuras da sociedade portuguesa que mais recentemente subscreveram o manifesto". Jorge Sampaio não é figura recente, não há figuras recentes.
Indo à substância da notícia, o facto de serem comuns notícias deste tipo leva-me a ignorar os jornais portugueses. A notícia é apenas a reprodução de excertos do manifesto de uns senhores que nos querem dar uma música que já conhecemos, entrecortada por um recitativo inútil de ligação das frases. Não há surpresa nenhuma. Nenhuma pergunta, nenhum confronto.Se a notícia fosse reduzida à frase "a rtp tal como existe é necessária porque sim" o resultado seria igual.
Não preciso de recorrer ao PÚBLICO para ficar a saber que as pessoas mencionadas na "notícia" estão contra o "atentado ao serviço público de tv". Eu até posso enumerar mais umas dezenas e acerto de certeza. A única novidade para mim foi o nome completo do cantor, de que só conhecia o primeiro nome.
Quanto à gestão do serviço público de tv, não tenho preferências. Preocupante é que pesa demasiado na despesa e particularmente na factura mensal da energia. As alterações de que se tem falado não vão alterar este estado de coisas. Os subscritores do manifesto não estão preocupados com isso. Presumo que não têm dificuldade em pagar as suas contas, e ainda bem, mas podiam preocupar-se com as contas difíceis de muitos dos seus concidadãos.

domingo, setembro 2

E a luz desfez-se



Dando cumprimento a mais uma directiva do Grande Irmão que sabe melhor do que nós como devemos iluminar os nossos espaços, está ilegalizado a partir de ontem o fabrico de lâmpadas incandescentes na UE. A comercialização deste simpático produto está também condenada, ficando restringida a stocks e a modelos muito específicos. A sentença para o halogéneo está também lavrada: morte daqui a quatro anos. Preparemo-nos então para gastar uma pipa de euros nos LED que nos vão obrigar a consumir, para poupar uma pequena quantidade de energia - poupança que nem sentiremos porque a factura vai continuar a subir a favor das eléctricas. As novas lâmpadas anunciam com pompa grande longevidade. Como se a durabilidade técnica pudesse ser um desafio à legislativite compulsiva e à simpatia por algum novo lobby, que hão-de restringir o uso do LED mais cedo do que tarde.

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Duas ligações interessantes: http://greenwashinglamps.wordpress.com/ e http://freedomlightbulb.blogspot.pt/

terça-feira, agosto 28

Dos jornais

Nova revelação: Hugo Chávez tem uma veia de jornalista e corrige as notícias. Na visita às chamas de Amuay, no domingo, disse que era impossível que se tivesse sentido cheiro a gás umas horas antes do acidente.

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O governo de Guterres, ou assim, em França, cumpre a promessa eleitoral de suster o preço dos combustíveis.

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Em Itália, assiste-se a um interessantíssimo debate médico. Está em causa a que tipo de controlo vão ser obrigados os frequentadores de ginásios, antes de se entregarem a essa perigosa actividade. Eu bato palmas, pois já ganhei um problema de coluna e a rotura de um nervo por me aventurar num desses antros. Vejamos: a Federação dos Médicos de Medicina Desportiva diz que o controlo por um médico do desporto é uma medida de defesa da saúde do cidadão, e o único controlo epidemiológico que resta, tendo em conta a abolição de inspecção para serviço militar. Outros médicos da área desportiva estão de acordo: o exame por um médico generalista não é suficiente. Mas os médicos de família não concordam e lembram que em muitos casos nem recebem dinheiro pela consulta. Além de que é difícil obter consulta numa área com poucos especialistas. O presidente da Fundação para o Coração, por seu lado, encara de modo muito positivo a obrigatoriedade do certificado obrigatório, mas acha que se deve ir mais longe e prescrever também uma visita ao cardiologista. As falhas de coração são a primeira causa de morte na actividade desportiva.
Reflectindo melhor, e dados os imensos riscos, talvez os governos devam proibir os ginásios. Ou,pelo contrário, se um estudo conveniente vier denunciar a imensa mortalidade causada pela ausência de exercício, torná-los obrigatórios e gratuitos, desviando o custo para a factura dos manuais escolares.

segunda-feira, agosto 27

Figuras que a coltura faz

Ontem, revelou-se no Jornal da Uma da TVI (ao minuto 30) um pensador e analista político que só era conhecido até agora como músico de algum sucesso. Em declarações à reportagem, Rui Veloso lamentou o estado do país e disse que só faltava implantarem-nos um contador para contabilizar o ar que respiramos. Que há neste país pessoas que ele julga que são claramente criminosos e deviam ser julgadas e condenadas e não há ninguém que ponha as coisas como deviam estar. E depois há as eleições e não sei quê e que vivemos numa democracia em que "demo" significa controlada pelo demónio. Demo-cracia, estão a ver? Ah, ah, ah, ah! A produção teve o cuidado de destacar no espaço das legendas algumas palavras-chave do pensamento do artista.

quinta-feira, agosto 23

terça-feira, agosto 21

A morte suspensa da senhora Gu

A realidade acaba de nos servir mais uma história fascinante, com o potencial de inspirar muita ficção. O introito do filme pode ser a cena da condenação à morte de Gu Kailai, no Tribunal do Povo em Hefei. Depois há um fash-back. A cena é um encontro em Inglaterra entre Gu e Neil Heywood, que ela há-de assassinar 10 anos depois. Percebe-se nas cenas seguintes uma tensão crescente em torno de grandes projectos imobiliários, entrecortada por sugestões de uma atracção amorosa que desponta. Cenas onde intervém Bo Xilai, marido de Gu e importante figura do Partido Comunista, deixarão instalada a dúvida sobre o tabuleiro em que joga cada uma das personagens.

Antes de 1/3 do filme convém introduzir outra figura com relevo para o desfiar da história: Wang Lijun,  chefe de polícia de Chongking e braço direito de Xilai. Lijun tem em mãos uma iniciativa anti-corrupção que vai de sucesso em sucesso.

As coisas complicam-se entre Gu e Heywood. O destino de um projecto gigantesco e dos milhões que ele faria correr abrem hostilidades por onde perpassam ameaças e chantagem. Aqui é necessário recorrer a um guionista de qualidade para dar vida e realismo ao enredo.

O assassínio de Heywood, assistido por Zhang Xiaojun, assessor de Gu, ocorre a meio do filme. A cena que precede o envenenamento merece particular atenção, pois é a altura de mostrar toda a perversidade de Gu. Saberemos pouco depois que o homicídio desperta a atenção do polícia Lijun, habituado a farejar crimes onde se jogam grandes fluxos de dinheiro e transacções ilegais. Lijun vai seguir de perto a investigação e descobre, com horror, que a pista conduz à esposa Bo Xilai. Lijun terá de se refugiar na embaixada dos Estados Unidos e vai passar um mau bocado, mas o filme não pode dispersar-se por aí.

Em paralelo e alternância de "takes" mostra-se a história do polícia X, subordinado de Lijun em quem este não tem grande confiança. X vive uma paixão tórrida por Y, empresária vagamente suspeita de ter morto o marido de maneira brutal por discussões de propriedade. Y é protegida por X e sempre mostrada em cenas mal iluminadas, embora se lhe reconheça semelhança física com Gu.

A queda do casal Gu e Bo será mostrada do ponto de vista dos polícias e em simultãneo com o avançar da investigação ao crime perpetrado pela senhora Y, que é presa mas pouco depois desaparece.

Perto do fim voltamos à cena do julgamento e leitura da sentença. As cenas finais mostram a perturbação do responsável da investigação sobre Y intrigado com o desaparecimento da suspeita. Na última cena ele está a ver o video do julgamento de Gu e faz-se luz: é a senhora Y que está no tribunal a declarar que a sentença é muito justa. O mistério passa a ser o desaparecimento de Gu.

Este argumento é quase todo  baseado em factos reais.




domingo, agosto 19

Bomba em pré-pagamento

Na 4ª feira, um voo da Air France com destino a Beirute não pôde aterrar. O Líbano, onde uma parte do Hezbollah se alberga, sofre com  a instabilidade das zonas limítrofes. Na 4ª feira os acessos ao aeroporto de Beirute não ofereciam segurança. Por necessidade de combustível e por lhes terem sido negadas alternativas, os pilotos viram-se na necessidade de aterrar em Damasco.

Ora, Damasco é a terra onde ainda governa o rapaz mau (escolha arriscada dos governos ocidentais?), com quem a França parou os seus negócios. A Air France interrompeu as ligações com Damasco há quase um ano. Por isso a bomba de querosene, ao estacionar o avião galo, ficou logo em pré-pagamento. Os pilotos chegaram a iniciar a aplicação de um plano B, anunciando um possel assalto ao bolso dos passageiros para obter o cacau necessário. No fim o rapaz mau lá vendeu a gasolina e a Air France pagará por transferência. O avião, entretanto, terminou a sua viagem após uma escala em Larnaca.

Laurent Fabius aparece hoje nos jornais a classificar a aterragem em Damasco de incompreensível e perigosa. Sim, que isto de chamar nomes e incitar à guerra aos rapazes maus é uma coisa, mas estar preparado para gerir um eventual sequestro é muito maçador. Alguns comentadores no Figaro já lhe chamam, com graça, ministro des affaires qui lui sont étrangères.

sábado, agosto 18

Rankings de universidades

Saiu no dia 15 a actualização do ranking de Shanghai. Esta classificação das universidades tem por base "seis indicadores objectivos" que incluem: número de alunos e investigadores com Prémio Nobel ou Medalha Fields, número de investigadores altamente citados na Thomson Scientific, número de artigos na Nature ou na Science, número de artigos indexados no Science Citation Index e desempenho per capita normalizado pela dimensão da instituição.

As universidades portuguesas surgem no ranking nas posições seguintes.

1
University of Porto
301-400
2-3
Technical University of Lisbon
401-500
2-3
University of Lisbon
401-500


Também foi recentemente actualizado o Ranking Web de instituições do ensino superior, que utiliza parâmetros virados para a visibilidade: presença, impacto, abertura e excelência. O impacto conta 50% e baseia-se na contagem de links externos que reconhecem o valor e utilidade da informação disponibilizada. O modo como as instituições se deixam ver na internet tem influência decisiva no modo como este índice as avalia.

As 10 universidades portuguesas mais bem colocadas são as seguintes:











(As 4 colunas à direita representam os valores de presença, impacto, abertura e excelência, repectivamente.)

Culturas na primavera

O festival de música e teatro de Bizerte, no noroeste da Tunísia, teve um dia agitado. A intervenção do convidado Samir Kantar foi contestaida de forma violenta por manifestantes salafistas. O presidente da Liga Tunisina da Tolerância, El Masri, denunciou os distúrbios, vendo neles a mão, ou pelo menos os olhos bem fechados, do governo actual. Samir Kantar é uma espécie de decano dos prisioneiros palestinianos, com passagem por cadeias israelitas, com um grande atentado e assassinatos no cirriculum, entre os quais o esmagamento da cabeça da filha de 4 anos de um polícia. Kantar, condecorado por Assad e Ahmadinejad, defende a posição do (ainda) governo sírio contra os insurgentes locais.
Os salafistas em protesto já tinham também impedido a actuação de músicos iranianos no festival.

A Liga da Tolerância quis simplesmente celebrar a luta dos islamistas libaneses. Recorda que esteve ao lado dos salafistas durante a primavera tunisina mas alerta agora para a ameaça de islamização da constituição, justamente em virtude das pressões do grupo, que pretende oficializar a sharia." Que vão combater os israelitas nos territórios ocupados em vez de brigarem com os seus concidadãos e os seus convidados", diz El Masri.

quarta-feira, agosto 15

A oração da discórdia

Hoje festeja-se a Assunção da Virgem. A Assunção é a subida da Virgem aos céus onde recebe a coroa. Convém notar que ao contrário da Ascensão de Jesus, que subiu ao céu pelos seus próprios meios, Maria foi aspirada pela força divina.

Hoje, em França, será rezada a oração que o cardeal André Vingt-Trois dirigiu a todas as dioceses. A prière pour la France invoca a Virgem e transporta uma mensagem: alerta os católicos contra as mexidas anunciadas na legislação sobre a família e recorda como é importante para toda a criança a presença de um pai e de uma mãe.

Certamente que amanhã a notícia já terá ido para o lixo, mas hoje é mote de gozo para jornalistas e comentadores na imprensa francesa, sempre prontos a zurzir na Igreja e a confrontar as posições retrógradas dos católicos com um mundo em mudança. O Libération regista que 65% dos franceses são favoráveis ao casamento entre pessoas que gostam de sexo com pessoas do mesmo sexo. A notícia não é clara, mas parece tratar-se de uma sondagem a católicos. Seria interessante fazer uma sondagem entre os muçulmanos franceses, dos quais 85% votarem em Hollande. Ou, aproveitando o dia de calma republicana em Amiens, recolher as opiniões dos jeunes - essa nova categoria social que soa bem em francês. E, já agora, sondar as próprias pessoas que gostam de sexo com pessoas do mesmo sexo.

Nestas coisas, a Igreja põe-se a jeito. Além de ter telhados de vidro, fica a descoberto que os seus altos dirigentes são incapazes de distinguir o fait-divers das grandes linhas com que a realidade se escreve. Um pouco mais de atenção bastaria para reconhecer que a Virgem nunca fez pequena política e nem perderia um minuto com o assunto só para irritar Hollande. A Virgem ocupa-se mais das grandes causas, tipo conversão da Rússia, prometida em 1917 a uns pastores, e de alguma forma cumprida em 1989. Nesta questão de casamentos entre pessoas assim e assado, Ela nem perceberia do que se está a falar.

Na foto: assunção da virgem, Notre Dame de Paris, baixo relevo no flanco norte.

domingo, agosto 12

Álgebra (continuação)

Nicolas Warner responde no Huffington Post ao artigo de Andrew Hacker no NYT. Para defender o ensino dos conteúdos de "álgebra", Warner alinha argumentos como: a álgebra permite às pessoas pensar de modo abstracto; desenvolve a capacidade de fazer uma análise distanciada da realidade exterior; quem tiver adquirido familiaridade com a álgebra está preparado para pensar melhor, mesmo que nunca mais na vida venha a utilizar a álgebra.

Todo este discurso me parece pouco convincente. Eu sou de opinião que todos os adolescentes devem ter a possibilidade de aprender as técnicas da álgebra, mas julgo que os argumentos de Warner são praticamente impossíveis de demonstrar.

Em várias circunstâncias da vida deparamos com discussões com esta característica: as posições em confronto têm argumentos que nunca convencem de modo definitivo a parte contrária. O debate político está cheio disso mesmo. Os partidos em confronto advogam soluções diferentes para os problemas, e as medidas que acabam por ser tomadas resultam do acesso ao poder e não da demonstração racional da sua necessidade e eficácia. A vida prática é assim: podemos alinhar muitos argumentos que conflituam entre si mas o caminho para as soluções resulta tanto do conhecimento empírico, da tentativa e erro, como da justificação teórica do modo de actuar.

Warner é professor de Física e Matemática, e naturalmente interessa-lhe que os alunos lhe cheguem à universidade a saber calcular. Embora simpatize com a posição de Warner, a sua argumentação não pode deixar de me evocar as justificações dos sindicatos quando ameaçam com formas de luta que paralizam serviços importantes e afirmam estar a defender a qualidade dos serviços, no interesse geral.

Marte a cores

Esta é a primeira foto a cores do que a Curiosity viu. E aqui pode ver-se por onde andou o planeta desde outubro de 2011 até julho deste ano.

segunda-feira, agosto 6

Curiosities



Há menos de 24 horas terrestres que a Curiosity aterrou com sucesso em Marte, completando a viagem que iniciou na Terra em 26 de novembro de 2011. Ir a Marte é um prodígio da ciência e da engenharia e entre as tentativas  há uma lista de insucessos. O último foi o da missão russa Phobos-Grunt, lançada menos de três semanas antes da Curiosity. Um acidente informático impediu a ignição dos foguetes que desprenderiam a nave da órbita terrestre, à qual ficou amarrada mesmo depois de algumas tentativas de relançamento. O engenho viajou em torno de nós carregado de 11 toneladas de combustível altamente tóxico e despenhou-se em 15 de janeiro passado no Pacífico sul.

O esquema seguinte contém dados interessantes sobre os valores dos parâmetros da fase inicial do voo da Curiosity.
(Fotos do Mars Science laboratory da NASA.)

A aterragem efectuada, uma série de manobras de precisão e que em particular tira partido da existência de atmosfera em Marte, é um sucesso notável, e demonstração de uma impressionante capacidade técnica.

O lançamento, teorizado desde 1925 por Hohmann, é uma operação que requer igualmente grande rigor. A órbita de Hohmann  (meia elipse tangente à órbita terrestre e à de Marte) permite minimizar a energia necessária ao desprendimento da órbita terrestre. O lançamento é efectuado de modo a que a órbita de transferência tenha afélio coincidente com a posição de Marte no momento em que a nave atinge a órbita deste. O periélio é o ponto de partida, a órbita de estacionamento terrestre; a energia necessária para o desprendimento e aceleração (no sentido do movimento de translacção terrestre), traduzida em termos da velocidade V relativamente ao Sol, é calculável com base nas leis de Newton, as mesmas que garantem que a órbita subsequente tem a forma de uma elipse e que o sol faz o trabalho de transporte. Detalhes e esquemas aqui.

Na verdade as coisas são mais complicadas, incluindo um troço de órbita hiperbólica que faz a colagem suave  entre a órbita terrestre e a de transferência (e o mesmo à chegada em Marte). O parâmetro C3 que aparece no gráfico acima  representa o quadrado da diferença V-VT,  em que VT é a velocidade da Terra relativamente ao Sol, de onde a designação de "excesso hiperbólico".

domingo, agosto 5

A estação tonta no New York Times

Um artigo de opinião publicado em 28 de julho no New York Times advoga que se deite fora tudo o que cheire a "álgebra" (cálculo aritmético com símbolos) no ensino pré-universitário. A razão é simples: é que parece que o assunto é difícil e causa de insucesso na escola. O NYT está a abrir a porta ao pensamento neo-liberal descaradíssimo. Será apenas um passo até à conclusão de que, para ensinar apenas o que toda a gente aprende sem esforço, as escolas não são necessárias, e mais vale fechá-las.

sexta-feira, agosto 3

Hollande não dorme

O procurador de Nanterre foi hoje destituído. Passará a estar às ordens do Procurador Geral, representando o ministério público, no tribunal de recurso de Paris.

Philippe Courroye teve uma actuação de colagem ao poder durante a presidência de Sarkozy, tendo-se tornado uma figura controversa e muito criticada no interior do próprio aparelho de justiça. No âmbito do processo Bettencourt, que caiu em Nanterre, fez o que pôde e o que não pôde para encobrir possíveis responsabilidades do presidente e amigos, tendo ido até ao conflito aberto com uma juiza de instrução.

quarta-feira, agosto 1

O jejum em Gennevilliers

Gennevilliers é uma região administrativa (comuna) do noroeste de Paris, governada por comunas. A administração esteve há dias a ponto de despedir quatro monitores de uma colónia de férias. Motivo: os quatro jejuavam, em respeito ao Ramadão, o que foi considerado mau exemplo para as crianças. O contrato de trabalho, de certeza inconstitucional, impunha uma pausa para alimentação à hora de almoço. Em face dos protestos, o governo de Gennevilliers acaba de recuar. Os comunas de Gennevilliers são agora criticados de todos os lados: a Frente Nacional, que inicialmente os tinha apoiado, lamenta agora a reviravolta. A UMP, pela voz do seu secretário geral, insiste em que a câmara de Gennevilliers nunca teve razão ao avançar para a tentativa de suspensão. É o que conta o Libération de hoje. Afirma o dirigente da UMP que ninguém demonstrou que a prática do Ramadão impede de trabalhar.

A história tem muitas leituras, mas eu tenho direito à minha: extremistas de esquerda e direita são tão amigos dos trabalhadores que querem alimentá-los à força, e tenebrosos neo-liberais aproveitam a oportunidade para instilar subrepticiamente a ideia de que os custos com cantinas, subsídios de alimentação e pausas laborais são um luxo que pode muito bem ser suprimido.

domingo, julho 22

Puig (1932-1990)

Hoje passam 22 anos sobre a morte, infelizmente prematura, de Manuel Puig. Não será um génio da literatura mas é um dos autores contemporâneos mais talentosos. Já evoquei noutro post uma das suas obras mais interessantes, Boquitas Pintadas. Das outras, escolho sem hesitar Cae la Noche Tropical, Sangre de Amor Correspondido, La traición de Rita Hayworth e The Buenos Aires Affair.

Puig é um mestre contador de histórias caracterizadas pelo falso kitsch, pelo folhetinesco carregado de significados, segredos, enigmas e sentimentos, pela não trivialidade da narrativa, trabalhada com a precisão e a perícia de um artífice dedicado, e pela  construção de alguns dos diálogos mais fluentes, eficazes e verosímeis que se podem encontrar na literatura recente. As personagens, umas frágeis e outras cruéis, destilam paixões, frustrações, medos e perfídia em enredos credíveis como a vida de todos os dias.

Algumas obras estão traduzidas em português. Fica aqui a sugestão para leitura de férias.

sábado, julho 21

Batman in Aurora

A cidade que a Forbes classificou em 9º lugar como a mais segura dos Estados Unidos acaba de entrar na lista dos massacres urbanos de que Columbine se tornou símbolo.
A dose de intriga repete-se. Que motivações fizeram agir o rapazola vestido de Joker que não chamava a atenção de ninguém? Os psico-explicadores servem através dos jornais e tvs as conjecturas habituais. No fim, sabemos pouco. James Holmes falhara nos exames do curso de doutoramento em neurociências. Actuou só. Não se lhe conhece ligação a grupos terroristas ou ideologias extremistas. Não temos alternativa: a sua masculinidade falhada fez-se substituir pela alta violência, tosca mimetização do comportamento macho, quando o desempenho sexual permanece por resolver.
Será? Há afirmações que não podem ser demonstradas. Aqui vai mais uma: a cena não poderia ocorrer na estreia de outros filmes recentes, como The Queen of Versailles, The Well Digger's Daughter, Magic Mike.

sexta-feira, julho 20

Los recortes

O actor milionário Javier Bardem ontem, em Madrid, interpretando um indignado com o aumento do IVA.
Palco e holofotes à parte, Espanha agita-se e recusa ser aquilo em que se tornou.

Foto e notícia no El País.

quarta-feira, julho 18

Comprar tempo

É sabido que na vida em geral e em alguns sectores de actividade também, o tempo é um bem precioso porque escasso. A falta de tempo pode ser mais dramática do que a falta de dinheiro, sobretudo para quem tem dinheiro à disposição.

Em Madrid, uma empresa começa hoje a admitir colaboradores vocacionados para dar tempo a quem não o tem, tanto para tarefas de rotina como para extravagâncias. Comprar uma prenda, remendar o fundo de umas calças, cozinhar paella, fazer uma declaração de amor - são os desafios que poderão vir a colocar-se aos novos profissionais: os "solucionadores" vão estar aí para resolver os pequenos ou grandes problemas que as agendas carregadas deixam sem solução.

Aguarda-se que a ideia alastre por aí.

Rui Rio em Vigo

sexta-feira, julho 13

A presumível inocência dos tontos

No passado dia 6, os jornais contavam que o suspeito de roubo do Códice Calixtino, em Santiago de Compostela, tinha sido preso, e que conjuntamente tinham sido presos preventivamente os seus mais directos famliares, esposa e filho.
A respeito do caso Nóos, em que se investiga o desvio de mais de 5 milhões de euros de fundos públicos eonde  a presumida actuação delituosa de Urdangarin está em foco, o tribunal de Palma de maiorca acaba de recusar a imputação da Infanta Cristina, esposa de Urdangarin. É notícia de hoje.

Poder-se-á cair na tentação de dizer: lá como cá, a justiça não é independente e defende os mais poderosos. Mas isso é a maledicência comum. Os tribunais é que têm inteiro conhecimento da causa, o que lhes permite tomar decisões tão acertadas quanto possível. Eu deduzo, simplesmente, que o juiz de Santiago teve razões para crer que a mulher e o filho do então suspeito não são tontinhos e percebem o que se passa lá em casa.

quinta-feira, julho 12

"Não podemos escolher"

Não temos essa liberdade.
São frases de Mariano Rajoy, ontem, reconhecendo que já não governa, se é que governou alguma vez. Os cidadãos (ou súbditos? ou administrados?) espanhois assistem atónitos ao esvaziamento do poder político que se tinham dado ao trabalho de eleger, à deslocação do centro que decide para muito longe, uma espécie de big-brother longínquo que por economia de explicações se designa por "bruxelas".
Sempre bem dispostos, entretanto, a dar cognomes aos seus putativos governantes. José Luís era zETAp ou Zetaparo. Mariano já foi Mariasno, hoje já é Ruinajoy.

terça-feira, julho 10

Misérias da ficção

José Luis Corral, especialista em história medieval e novelista, ficcionou a saga do desaparecimento do Códice Calixtino num livro recente onde, com um padrão de enredo muito em voga e cansativo, talvez à la danbrown, os maus são um grupo ultraortodoxo da Igreja.

Corral mostra-se desiludido com a realidade e teima em ver apenas a ponta do iceberg nos factos revelados na última semana. Como é que um aparentemente pacato electricista pode usurpar o papel da organização sinistra que ele tinha inventado?

A realidade, tanto quanto me apercebo, deve estar também desiludida com Corral. Como contou o arguto juiz instrutor, o electricista Manuel Fernández Castiñeiras é uma pessoa astuta. Nem a mulher, que sabia que ele roubava dinheiro, estava ao corrente da subtracção do Códice. Parece que o protagonista da versão real já tinha arrecadado uns euros da Igreja, na ordem do milhão, e prossegue a investigação sobre as suas contas. Mas tinha um comportamento reservado e modesto. A sua maior preocupação de momento era a reparação do seu velho automóvel, que iria custar uns 2000 euros. São estas pessoas simples, discretas, que iludem não só as esposas como também os romancistas distraidos.

No estado actual da história, tudo indica que o Códice não foi objecto de transacções, nem extorsões, nada, nem luvas... refiro-me a luvas reais, daquelas de pôr nas mãos, porque nas fotos publicadas todos pudemos ver arcebispos e primeiros-ministros a folhear enternecidamente o milenário  livro com as mãos que Deus lhes deu. Algo estará por contar, e o que falta é com certeza mais interessante do que as ficções que ainda cairão em tentações de se dar a ver.

domingo, julho 8

Vem aí a praia


Chegou o fato de banho à prova de lúbricos. Está tudo contado no Daily Mail. Desenhado por Crystal Huyben, é o ideal para as mulheres que pensam que a sexualidade é um admirável dom de Deus e desejam preservar a sacralidade do corpo para o marido.

A ideia pode ter acolhimento em variadíssimos nichos de mercado. Aguardo impaciente o lançamento da peça correspondente em moda masculina. Todos aqueles a quem anos de maçada no ginásio não desenvolveu "six-packs" nem, pior do que isso, encurtou o abdómen, ficarão gratos. Já para não mencionar os esbranquiçados que só grelham sem bronzear e continuam tão inapresentáveis no verão como no inverno. Vá lá, estilistas, sigam o exemplo da Crystal Huyben, despachem-se, alguém tem de fazer alguma coisa.

Zócalo

Não vai ser tão falada como Tahir, mas a grande praça da cidade do México encheu-se ontem de indignados com os resultados das eleições. Os que perderam falam de farsa, de compra de votos (onde até uma cadeia de supermercados parece envolvida) e de urnas com votação acima dos 100%. Apoiantes dos principais partidos, PRD, PAN e PRI, esgrimem para já nos comentários dos jornais. Mas tudo indica que o pó há-de assentar e os mexicanos vão viver com o novo presidente, actual marido da popular Angélica Rivera, estrela de telenovelas, e nos próximos seis anos gozarão a felicidade possíve.l

sábado, junho 30

O juiz Roberts no labirinto das palavras

Na passada 5ª feira, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou a lei que reforma o sistema de saúde  É sem dúvida uma vitória de Obama, mesmo que por linhas tortas. Ou talvez o adjectivo torturadas seja mais apropriado. A decisão do Supremo e a sua fundamentação não param de ser comentadas. Vão dar, por muito tempo, alimento à militância pró ou contra e à exegese jurídica. Assim à primeira vista, o juiz Roberts transformou uma multa num imposto, mas fez mais: lançou a dúvida sobre a natureza da coisa ao mesmo tempo que abriu as portas a que se saiba o que realmente é: o que só pode acontecer com a entrada em vigor, já que ninguém tem vida para ler as mais de 2000 páginas que estão por trás. Porque agiu assim o juiz conservador? perguntam-se, furiosos, muitos detractores da lei ou lá o que é. Ora, porque pode ter pensado que passar a coisa é o melhor para os americanos, que apesar de tudo fazem escolhas nas eleições.

sábado, junho 23

Computers


Passa hoje o centenário de Alan Turing. É por isso apropriado lembrar que antes de Turing dar os passos decisivos para a criação do computador, já havia computadores. Bem... a palavra tinha então outro sentido: os computers eram pessoas com boa prestação em matemática que trabalhavam em equipas encarregadas dos extensos cálculos necessários na ciência e nas suas aplicações.

Nem todos os cientistas se sentem muito confortáveis com o cálculo extenso e complexo. No passado, a produção épica de registos astronómicos de Tycho Brahe permitiu a Kepler, um calculador exímio, estabelecer as leis do movimento dos planetas; a tenacidade de Alexis Clairaut resolveu a órbita do cometa Hayley, causando admiração dos seus contemporâneos. Clairaut organizou a tarefa dividindo o trabalho com dois colaboradores, o astrónomo Joseph Jerome Lalande e a mulher de um relojoeiro, Reiebe Lepaurte.

O poder saido da Revolução, em França, promoveu a criação de equipas de computadores para elaborarem tábuas trigonométricas e de logaritmos.

As equipas de calculadores que foram surgindo trabalhavam por vezes em regime militar, como no caso dos "Boy Computers", um grupo de rapazes que o English Royal Observatory encarregou de produzir cálculos para uso em astronomia e na navegação.

Sala de computadoras da NASA, 1949

A divisão de trabalho permitiu utilizar como computadores pessoas com fracos conhecimentos de aritmética. assim se deu trabalho a desempregados durante o New Deal. Mas com a segunda guerra mundial e a necessidade de resultados fiáveis aumentou a procura de computadores competentes. Destes, muitos eram mulheres. Calculavam dias a fio em regime de subdivisão de tarefas. (Informações mais detalhadas neste artigo de Dr. Phil.)

A profissão de computador desapareceu com a forte automatização do cálculo a partir de meados do século 20. No entanto, longas tabelas de integrais e soluções exactas de equações diferenciais foram executadas por pessoas vivas até há relativamente pouco tempo, antes do aparecimento de software capaz de manipulação simbólica.

Quando Turing escreveu "The behaviour of the computer at any moment is determined by the symbols which he is observing, and his 'state of mind' at that moment" estava a referir-se a gente, não a máquinas. O filósofo Daniel Dannet faz neste artigo do The Atlantic uma aproximação de Turing a Darwin, afirmando que ambos mostraram que se pode ser competente sem perceber nada do assunto. A provocação é interessante e presta-se a glosas humorísticas, mas os pedagogos - modernos ou conservadores - não gostarão da ideia.

domingo, junho 17

Lenta lucidez

José Luis Rodriguez Zapatero deu uma entrevista à Al Jazeera. Para lá de umas considerações genéricas de como salvar o o euro, a Europa e mesmo o mundo, o ex-PM reflectiu sobre o passado próximo. Disse ele: "Se tivéssemos poupado mais e pedido emprestado menos ao exterior, teríamos sofrido menos." Claro que "poupado mais" é um eufemismo exculpatório para "esturricado menos". E lamentou que se tenha investido "mais do que se ganhou".
Em todo o caso, face a esta auto-crítica, julgo provável que José Luiz esteja agora a estudar economia.

Encruzilhadas do eu

Parece, de acordo com este artigo, que a personalidade extravagante de Howard Hughes esteve na origem da investigação que levou Bruce Hood à teoria que expõe em The Self Illusion. A brincar, podemos dizer que chegámos ao paradigma trans-pós-moderno, quando se sustenta que o eu não passa de uma história, uma narrativa construida. Parece líquido também, de acordo com comentários à entrevista conduzida por Jonah Lehrer, que aos budistas esta versão do eu agrada muito e que no essencial eles já sabiam tudo. Enquanto aguardamos que os especialistas façam progressos na explicação do que realmente somos, se é que a questão sequer faz sentido, lá teremos de ir vivendo as nossas vidas, perdão, histórias.

sábado, junho 2

Há morte para além da vida?

A pretexto do livro Imortality de Stephen Cave, Ronald Bailey passa em revista as narrativas mais comuns da imortalidade: prolongamento da vida, ressurreição, alma e continuação pela fama ou descendência. Declara que nenhuma se aproveita e tenta consolar-nos do medo da morte, do não ser, com a perspectiva assustadora do que seria a vida eterna. Mas ao citar Epicuro nem se apercebe de que pode estar a deixar-nos ainda mais aterrados: se não podemos aperceber-nos do momento em que passámos a não ser, talvez a vida, vista por cada um, seja realmente eterna...

A natureza arrepiante do tema é cortada pelo bom humor dos comentários ao artigo.

De Modena


O terramoto faz agora parte de todas as conversas, e pressente-se quando toca um telefone. Hoje, um catedrático do Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Modena e Reggio Emilia garante que a situação tende a estabilizar-se, não havendo, no entanto, certezas absolutas, apenas probabilidades. Quase todas as igrejas da cidade estão fechadas e alguns actos de culto anunciam-se para o ar livre. Há ruas interditas a peões, prescrutam-se as paredes antes de entrar nas ruas estreitas do centro, descobrem-se rachas que podem não ser novas, e dono de cão ou gato vê com apreensão qualquer comportamento do bicho que lhe pareça inabitual. Nas povoações próximas mais atingidas continua a viver-se uma situação difícil. Em Roverino, oito famílias assistiram ao desmoronar do prédio onde viviam: danificado e interdito, caiu como um baralho de cartas três dias depois do abalo que lhe deu o golpe. Agora pensam em processar a construtora, a quem tinham pago 200 milhões de liras pelos apartamentozitos, vendidos como muito sólidos, em 1993. O desmoronamento veio pôr a nu que as garagens não estavam construidas em cimento armado, mas sim com tijolo perfurado.

Entretanto, nem só a instabilidade do solo faz as coisas mudar para pior. Na livraria Feltrinelli, razoavelmente bem fornecida, as empregadas são agora pouco simpáticas, não parecendo nada interessadas em dar uma ajuda ao cliente. À entrada há saldo de cd's: a pop a 6€ e a clássica a 12. Quem vende sabe bem que Bach, Beethoven e Mozart valem a dúzia de euros. Mas quem é que os daria pelos Moody Blues ou mesmo pelas Songs from a Room do Cohen? Nem toda a "cultura" vale o mesmo. A pop é etiqueta de uma pose e de uma data. Com o passar do tempo, esvai-se o ténue significado que carrega.

quinta-feira, maio 17

Nastagio degli Onesti

Completam-se hoje 502 anos sobre a morte de Sandro Boticelli. Neste painel do Nastagio, o cavaleiro suicida, já morto, executa o castigo da mulher que amou e o rejeitou, também morta, arrancando-lhe o coração e dando-o aos cães. A cena macabra repete-se todas as sextas feiras no mesmo sítio a uma hora certa: a maldição cumprir-se-á até à eternidade.
A história é revelada a Nastagio, quando passeava no bosque, também ele a pensar no suicídio por causa de uma donzela que não o quer. Noutro painel, Nastagio convidará a jovem que o rejeita para um festim no bosque... uma sexta à tarde. Parece que ela, depois de ver o que sucedeu à outra, aceita casar com Nastagio.

A reprodução está no site da Berger Foundation.

sábado, maio 12

Tonteto do factor de impacto

Na página do Professor António Córdoba, catedrático de Análise Matemática da Universidade Autónoma de Madrid, há uma entrada cheia de poesia bem humorada. Apeteceu-me traduzir um dos "tontetos" do professor e deu nisto:

É urgente publicar um disparate
tão obsceno que ofenda de ipso facto.
Mas vai dar-te um grande índice de impacto
Ter ingénuos a olhar pró teu dislate.

Não interessa se é com crânios ou com nabos
que mútuas citações negociarás.
Banais, fúteis ou tontas tanto faz
Vem daí um impacto dos diabos.

Não te lances a problema complicado
Se o teu ritmo de publicação cair
Pois tens de o conservar acelerado.

Se destacas nas tuas intenções 
O  prestígio não deixares diluir
Cuida bem de te encher de citações. 

quinta-feira, maio 3

No mundo protegido da Assembleia da República

A Assembleia da República é um eco-sistema protegido, com as suas próprias leis de funcionamento e concepções do mundo exterior. Infelizmente, parece que a visão deste mundo que por lá prevalece é dominada pela arrogância, pelo desprezo pelos cidadãos mais desfavorecidos e pela ausência de sentido da realidade.
Ontem, a SIC foi à Assembleia da República perguntar a deputados se tinham ido às compras no Pingo Doce. As respostas foram todas negativas. Alguns deram a justificação da “indignidade”, outros simplesmente não costumam ou não gostam de ir às compras. Nenhum dos abordados teve a humildade ou o simples bom senso de responder: ó minha senhora, com o meu salário não tenho necessidade de aproveitar as promoções dos supermercados.





terça-feira, maio 1

Corrupções

Espanha: Urdangarin, o genro do rei, que até agora se proclamava inocente, reconhece-se finalmente culpado. Uns mails entregues ao juiz do caso Nóos pelo seu braço direito Diego Torres forçaram a mudança. Agora a estratégia de defesa do rapaz é prometer devolver uns 3 milhões do dinheiro que fez seu, para evitar a prisão. Como se prevêem obstáculos a que a justiça trate o caso como o de um cidadão normal, é provável que resulte. O mau cheiro do caso, no entanto, ficará no ar e empestará irremediavelmente a casa real.

França: Entretanto, Sarkozy é apontado pela Mediapart por receber financiamento de Khadafi para a campanha anterior. Um documento comprometedor é revelado. Em resposta, Sarkozy diz que se trata de falsificação grosseira e processa a Mediapart: não tinha outra saida. Mesmo que se tenha em conta o militantismo da Mediapart, as explicações do acusado não convencerão toda a gente, e o processo, a desenvolver-se, pode fazer o presidente cessante passar um muito mau bocado. Sobretudo se não for reeleito, como tudo indica. Para já, a revelação do caso joga fortemente contra o visado e acentuará a margem de vantagem do outro candidato. Do lado do PS, ninguém quer correr os riscos a que a presença pouco mobilizadora de Hollande poderia dar lugar.

Os alunos que sabiam demais

O caso é singular mas significativo dos estragos que pode causar a ideologia que permeia os sistemas educativos.
Uma professora da escola primária espanhola de Escaldes, em Andorra, é posta a andar porque ensina demais. A recomendação é de um inspector ido de Madrid. O diagnóstico é assustador: "os alunos têm um nível demasiado alto, que não corresponde ao nível de desenvolvimento curricular previsto para uma escola pública."
Os pais não entendem a decisão e pedem que se mantenha a professora. Para já, conseguiram que ela fique até ao fim do ano escolar, embora condicionada a baixar o ritmo de ensino. Parece que o problema é que os meninos estão "hipermotivados", perguntam, querem saber mais e a professora dá-lhes as respostas. Resultado: já sabem ler, começam os primeiros passos da escrita e até sabem somar e subtrair. Por este andar rapidamente se apropriarão dos escassos conteúdos que os inspectores dominam, tornando risíveis as funções desses burocratas.

domingo, abril 29

Esta semana, em Paris...

... o acontecimento relevante é sem dúvida a estreia da Revue des Ambassadeurs, musical de Cole Porter datado de 1928 e que se julgava perdido. A encenação deve-se a Christophe Mirambeau, que reconstituiu a partitura a partir dos trechos publicados e de fragmentos em poder de coleccionadores. Com um elenco de classe, estreia no dia 3. Dizem da música que é vibrante, rítmica e romântica. Provavelmente um grande Cole Porter.

segunda-feira, abril 16

domingo, abril 15

O leitor matinal

A percentagem de sobrevivência no naufrágio do Titanic:  num artigo de Jean Kaufman discorre-se sobre o papel da classe e do sexo em contraponto à narrativa tradicional.

Os espanhóis furiosos com o rei, por boas razões. Na família real parece que se perdeu o bom senso, digamos assim para usar palavras suaves. O editorial do El Mundo diz tudo preto no branco.

Ainda o desaparecimento de Descoings, director de Sciences Po: Os resultados das análises virão dentro de três semanas; uma opinião possivelmente controversa, não alinhada pelo unanimismo encomiástico.

terça-feira, abril 3

Puniacções

O PGR, normalmente pouco dado a iniciativas, veio aconselhar a punição rápida dos condutores alcoolizados. É provável que daí resulte um alívio marginal dos tribunais, mas a virtude maior da ideia do Procurador é sublinhar que frequentar (pelo menos determinadas) acções de formação é uma punição. Por isso, se este procedimento for adoptado, acharei urgente a divulgação da lista de acções de formação que podem ser classificadas como punição, ou puniacções. E será injusto não estender aos professores em exercício, que nem sequer são acusados de crime algum, a possibilidade de optar por um donativo pecuniário ou pela realização de trabalho comunitário, em alternativa à frequência de uma puniacção.

domingo, abril 1

Trinta anos depois

Recorda-se o horror que foi a guerra das Malvinas, as torturas que os próprios militares argentinos infligiam aos seus soldados, e como o britânico comum descobriu as Malvinas em 1982 (alguns pensavam que ficavam ao largo da Escócia). La Tercera recolhe aqui os relatos de dois veteranos, um de cada lado.

Surpreendentemente, no 30º aniversário da declaração de guerra feita por Galtieri, "el borracho", o La Nación de Buenos Aires revela que os Estados Unidos não mantiveram uma posição neutral. Surpresa! Melhor figura faz o Clarin, que coloca em posição de modesto relevo as notícias realmente importantes: numa Argentina que se afunda, as escolas de sedução vivem um boom eufórico, procuradas por cada vez mais homens que pretendem conquistar mulheres. Os varões das classes altas aprendem lá que os homens não se querem bonitos, e que, para não estragar a aproximação a uma rapariga, duas coisas é necessário evitar: mostrar o interesse sexual de forma aberta ou escorregar para o papel de "amigo".

PROCURA-SE

O humor dos cartoons do Spectator.

segunda-feira, março 26

Viva Sevilla!


Os andaluzes afinal não castigaram ninguém ontem, ao contrário do que previam as bocas e rumores disfarçados de estatística científica. A derrota do PSOE tem, afinal, um suave gosto a vitória. Nem ERES, nem cocaína, nem nepotismos são razão suficiente para abalar a fidelidade a um partido em que se acredita por razões muito práticas. A Andaluzia tem o PSOE no coração, muitos subsídios na carteira, e não se impressiona com escândalos. A qualidade e atitude do adversário (o PP tem também os seus escândalos que nunca sacode a tempo; o governo central retarda a publicação do orçamento com um calculismo que não funcionou) ajudaram a inverter o sentido esperado dos acontecimentos. Mas, passada a surpresa doce-amarga de uma vitória e uma derrota que parecem trocadas, os tempos que aí vêm não serão suaves para ninguém no sul da Ibéria.

No som do video: La Argentinita acompanhada por Federico Garcia Lorca.

sexta-feira, março 23

Em Espanha, bons casamentos

Primeiro foi a contratação do marido de Dolores de Cospedal, abortada à nascença. Agora há novo marido (logo o da vice-presidenta!) a entrar pela porta grande, desta vez na Telefónica. Pode estar tudo dentro da legalidade formal, pode o governo do PP vir lembrar que o homem é muito competente e que a Telefónica é privada, ou talvez nem devesse meter-se no assunto, já que assim é. Será? Não nos dêem música. Os que mandam em empresas importantes gostam da proximidade dos que mandam no país, isto é, os que têm a capacidade de movimentar dinheiro de impostos. O PP em Espanha continua assim, à sua maneira, a tradição de protecção à família em que o PSOE tem sido pródigo, particularmente com os recentes escândalos da corrupção andaluza.

O estrito apego às balizas da legalidade traduz-se na cegueira moral que se compreende tanto menos quanto maiores são as dificuldades por que passa grande maioria dos cidadãos. A insensibilidade moral dos partidos do poder arrasta consigo o desprezo da democracia e a corrosão dos regimes.

Ou todas estas objecções resultam só de má vontade e despeito de quem critica? No fundo, que importância terá que o Sr. A seja casado com a Sra. B? Não é ponto assente, por exemplo, que a infanta Cristina estava a leste das urdiduras do esposo? Deixemo-nos de preconceitos conservadores e sejamos felizes com as verdades oficiais para totós.

Metro de Lisboa chega ao aeroporto em julho

Diz o site da rtp. Poderia acrescentar: e que sorte que tivemos. Por pouco o aeroporto poderia já lá não estar quando o metro chegasse.

quarta-feira, março 21

Londres, farol do Islão

Ainda não é. Mas é o que o candidato do Labour a mayor de Londres promete para os próximos quatro anos: dar a conhecer a todos os não muçulmanos a mensagem do Profeta. Vale tudo para caçar votos.

sexta-feira, março 16

domingo, março 11

Sangue fácil?

Já fora do tempo, vi recentemente o filme muito apreciado de João Canijo "Sangue do meu sangue". Gostei de algumas coisas mas não tanto de outras.

Gostei do trabalho dos actores, excelentes, com excepção do "Beto", que parece estar noutro filme. Diga-se que a inconsistência da personagem, e do que lhe está atribuído no enredo, não ajudam nada. Gostei do realismo logrado na elaboração dos diálogos (excepto cenas com Beto) e na utilização da câmara "cusca", mas parte do efeito fica perdido na dicção frequentemente incompreensível e nas cenas sobrepostas, denunciando que o filme foi pensado para festivais internacionais onde é projectado com legendas. Fica o retrato razoavelmente conseguido de uma fauna de bairro pobre que a inteligentsia contempla com um misto de culpa e enlevo e que garante o sucesso relativo do filme. E sobra um problema grande: o enternecimento com que o Bairro nos é mostrado é destroçado pelo esquema fácil que rebenta com o argumento do filme. Refiro-me à paternidade do amante. É piroso demais. Por outro lado, depois do tiro as personagens são abandonadas logo ali à sua sorte. Fiquei com a impressão incómoda de que os habitantes do Padre Cruz mereciam um argumento menos preguiçoso. No entanto, depois de mais de duas horas onde há um punhado de cenas de bom nível artístico e técnico, ficamos com a impressão de realmente ter visto um filme. É este o segredo do sucesso.

A foto é do Luxury and Lust.

sábado, março 10

O mais comentado nesta manhã de sábado

Acha normal que DSK dê conferências em universidades? FIGARO
Sarkozy reconhece a dívida da França aos harkis LIBÉRATION
Meia porta na cara de Hollande em visita à Polónia FIGARO
Prisão preventiva para o ex-director geral dos ERE EL PAÍS
Há razões para a greve EL PAÍS
Prisão para o ex-director imputado pelos EREs falsos EL MUNDO
Os sindicatos entram em campanha ABC
Batalha pelo controlo do PS na Galiza LA VOZ DE GALICIA
Ana Manso demitiu o marido em nome da transparência DIÁRIO DE NOTÍCIAS
Núcleo duro de Sócrates ataca Cavaco PÚBLICO

E ainda, sem comentários:

Proibido contratar portugueses LA VOZ DE GALICIA

sexta-feira, março 9

À escuta de Laura

Laura Gómiz é uma mulher muito bonita. E, de acordo com notícias dadas nos últimos dias em alguns jornais espanhois, o que lhe abunda em beleza escasseia-lhe em escrúpulos. Presidente até há dias da Invercaria, sociedade de capital de risco ligada ao governo andaluz, esta socialista exemplar foi gravada em crispado diálogo com um subordinado, Cristóbal Santos. Laura insiste com Cristóbal para que falsifique documentos que justifiquem a passagem de milhões para empresas amigas do PSOE andaluz.

As gravações efectuadas são muito extensas. Fica aqui em copy-paste um pequeno trecho elucidativo. Tem qualidade literária suficiente para servir de modelo a autores de telenovelas.

- Gómiz: "Bueno, vale, Cristóbal. Entonces, ¿qué me estas diciendo? ¿Que no vas a hacer los… los…?".



- Colón: "Escúchame: yo no puedo hacer un informe que no es cierto. Yo te… tú me encargas un informe. Yo te hago y te pongo la verdad. Y tú decides si merece la pena o no".


- Gómiz: "Bueno, Cristóbal, entonces no me vales como trabajador de Invercaria. Yo soy la primera que ha recomendado que montemos los expedientes de todas las empresas en las que hemos entrado».


- Colón: "Perfecto, pero con fecha de hoy, ¿no, Laura?"


- Gómiz: "Con fecha de qué?"


- Colón: "De hoy. Es decir, se hace un plan de negocios hoy".


- Gómiz: "¡No! ¡Y dale con la fecha! ¡No le pongas fecha! La fecha en la que nos... Anterior. Y tú dices: no lo hago... No se hace".


- Colón: "Eso es un informe falso, Laura".


Em Espanha, trechos de escutas originais são transmitidos nas rádios em versão audio. Estas escutas a Laura Gómiz estiveram disponíveis em versão sonora no sítio do diário ABC durante todo um dia. Posso assegurar que as interpretações do texto eram bastante boas.
Nós por cá somos mais comedidos: excertos de escutas são lidos por locutores, ou então publicados em versão de banda desenhada. Ficamos sem saber se os actores tiveram nível.

segunda-feira, março 5

O paradoxo gramatical de João e Maria

Uma das derivas mais fascizantes do politicamente correcto é a tentativa de policiar a linguagem.

Entre nós, por enquanto não se tem passado da idiotia pleonástica do portugueses e portuguesas, trabalhadores e trabalhadoras, abundantemente utilizada desde Guterres, se não erro, e copiada com muito gosto pelos dirigentes do PCP. Mais recentemente tivemos também umas frases de origem difusa que metiam presidentas.

Em Espanha, para obviar ao problema da invisibilidade da mulher, surgiram nos últimos anos vários guias de linguagem não sexista. Ali a coisa é a sério, contou com o apoio do Ministério da Igualdade e mobilizou as autonomias, partidos, sindicatos e, claro, universidades, lugares que se prontificam a dar guarida e apoio a uma mão cheia de ideias lastimáveis.

A Real Academia Espanhola, depois de anos de silêncio, decidiu agora intervir publicamente com uma crítica fundamentada. Para além de inestética e criadora de embaraços gramaticais inúteis, a linguagem não sexista, chamemos-lhe assim de acordo com os promotores, incorre no vício despótico de aprofundar o fosso entre a linguagem da gente normal e a língua dos burocratas e redactores de documentos oficiais.

O controleirismo linguístico põe-se a jeito para questões difíceis e com alguma comicidade. Qual será a maneira não-sexistamente correcta de dizer João e Maria vivem juntos? Se há dirigentes dos dois sexos numa dada organização, está certo afirmar os dirigentes virão ao jantar acompanhados das suas mulheres? Este e outros quebra-cabeças para a gramática e para os ditadores do discurso estão analisados no interessante artigo de Ignacio Bosque publicado no El País.

domingo, março 4

A carruagem nº 4

Os sindicatos espanhois preparam-se para grandes movimentações de massas no próximo 11 de março. Em homenagem às vítimas do atentado de há 8 anos, dizem eles, que curiosamente ainda não se tinham lembrado delas. Os pilotos da Iberia tiveram o bom senso de marcar uma das suas greves para uma semana mais tarde, coincidindo com o dia de S. José que sempre é um santo operário como eles.

Entretanto, enquanto a casa real é seriamente salpicada com relatos sobre tropelias financeiras do genro do rei e Rajoy grita o seu Arriba España! enfrentando a UE, é com muita discreção que os jornais anunciaram há dois dias que o procurador geral ordenou a investigação dos restos da carruagem nº 4 do comboio de Santa Eugénia. Aparentemente, só falaram do assunto o Libertad Digital e, por razões opostas, o El País. Contrariamente às outras carruagens, a nº 4 não foi completamente desmantelada e poderia conter vestígios que (finalmente) produzissem prova do explosivo utilizado pelos terroristas. O jornalista que conduziu a longa e paciente investigação para descobrir os restos do nº 4 explica aqui a importância que atribui ao achado.

Mesmo entre os que acreditam que o julgamento do 11 de Março se baseou em factos fabricados e ocultação de provas, é cautelosa a esperança de que a análise dos vestígios traga novidades significativas. Tanta é a cautela que alguns comentadores já elaboram conspiração em 2º grau: polícia e investigadores fieis ao governo anterior e à verdade oficial poderiam ter contaminado o nº 4 com o explosivo que é mencionado na sentença.

Escreveu Mateus que  nada encoberto deixará de ser revelado, e nada oculto deixará de vir a ser conhecido. O que não sabemos da vida mostra o contrário.

quinta-feira, março 1

domingo, fevereiro 26

O passeio aleatório

Em conversa com Francis Fukuyama, Peter Thiel expõe convicções pouco politicamente correctas.

Vivemos num mundo em que a previsibilidade e os modelos deterministas cederam lugar aos modelos probabilísticos, que na verdade tiram substância a qualquer planeamento racional. O desenvolvimento tecnológico, motor de progresso até aos anos 50 e 60, tem vindo a desacelerar. Regulamentação exagerada da actividade científica tem o efeito de tornar mais fácil o trabalho em finanças e informática do que nas engenharias, onde é necessário experimentar com coisas reais. A ciência sofre os efeitos de uma politização intensa, estando a competição por projectos de investigação sujeita a um processo burocrático com efeitos tóxicos. Temos hoje 100 vezes mais cientistas per capita do que em 1920, mas com produtividade inferior.

Thiel, que vê no sistema educacional, rodeado de incentivos que lhe exageram o valor, uma borbulha que não tardará a rebentar, não se entusiasma com as escolas privadas, que na prática vivem à sombra dos subsídios do sistema estatal. Decepcionado com o desempenho das universidades criadas nos últimos 20 anos, desistiu do projecto de criar uma nova e em vez disso instituiu bolsas destinadas à criação de empresas.

Com Leo Strauss, pensa que o domínio da "correcção política", responsável pela censura de verdades que deveriam ser ditas, é o nosso maior problema político.

A avaliação nas universidades, ou os metricadores

Desde que há uma nova legislação para o Ensino Superior, as universidades vivem mergulhadas em tarefas de avaliação esgotantes e insensatas.

Para dar cumprimento ao legislado, cada uma desenhou a sua grelha de avaliação do pessoal docente, assente em parâmetros e fórmulas de complexidade variável, cuja aplicação envolve um esforço e dispêndio de tempo gigantescos. No final os resultados têm reduzida utilidade prática e um potencial efeito nocivo em termos do ambiente de trabalho.

A ilusão de que é possível classificar a qualidade por meio de grelhas muito finas e analíticas é também aplicada na selecção de candidatos aos consursos para as posições de carreira. O que está em curso é a tentativa de redução dos júris a uma manada obediente de metricadores (eu sei que o termo não existe), com a agravante de que a imposição de maioria externa no júri impede qualquer escola de contratar quem melhor se ajusta a determinado objectivo de desenvolvimento. Autonomia universitária? Ora, ora.

Este estado de coisas é possível por duas razões principais. Uma é a existência de instrumentos como o Excel que permitem, apesar de tudo, terminar as contas necessárias a uma avaliação com os avaliadores ainda vivos. Outra é uma daquelas ideias tão subrepticiamente disseminadas que nem damos por ela: é que toda a frenética actividade avaliativa parece grátis. E beneficia de uma comparação muito a gosto dos tempos actuais: também nas empresas privadas se avalia, por isso vamos nós fazer o mesmo. Fica por esclarecer sob que condições uma empresa não sustentada por impostos conseguiria manter-se se decisse ocupar o seu pessoal em tarefas avaliativas de tal envergadura em vez de dedicar-se à produção.

Poderia ser diferente? Sim, poderia. Revendo a sério o Estatuto da Carreira Docente Universitária. O que seria uma maçada para qualquer ministro, dado o previsível choque com lóbis amigos e inimigos.

sábado, fevereiro 25

O fim do "Público" em papel

Deixando em lágrimas e orfandade a opinião trotskista e mais sectária do país vizinho, o Público anuncia o fecho da sua edição em papel. Nascido para servir de contraponto ao El País quando este achasse oportuno incomodar o PSOE e Zapatero, alimentado com subsídios do governo de então, a sua razão de ser está esgotada. A capacidade de atrair investidores também. Jaume Roures, presidente da Mediapro e accionista maioritário do jornal, culpa a crise, o digital e a política de esquerda pelo insucesso do projecto. Roures, ex-trotskista com currículo de preso político, está em Hollywood por causa da nomeação de Midnight in Paris para os óscares. Roures é co-produtor do filme. Boa sorte para o Midnight, que é bem bonito e humorado.

quarta-feira, fevereiro 22

Da invisibilidade

Ontem o jornal das 21 da SIC Notícias entrevistou o cineasta Miguel Gomes, agora premiado internacionalmente.

Miguel Gomes reafirmou o que já tinha dito noutros lugares: que é essencial que o cinema português seja subsidiado para que se possa manter esta "liberdade artística" tão característica dos nossos filmes e que tanto é apreciada lá fora. O que torna possível esta liberdade é o facto de se poder fazer filmes independentes do poder político e económico, diz ele. (E sobretudo da bilheteira também, esqueceu-se de acrescentar. Ver mais adiante.)

Explicou melhor na entrevista porque é que não são os impostos dos portugueses que subsidiam o cinema. São as taxas sobre operadores de audiovisual, produtoras de dvd, receitas de bilheteira.

Sublinhou ainda que o cinema português tem gozado de liberdade de criação, sem pressões por parte do poder instituído. Como se consegue essa liberdade dependendo de subsídios? perguntou o jornalista. Gomes explicou tudo cristalinamente, uma vez mais: o cinema português actua como elemento de contra-poder mas não preocupa muito a classe política porque tem pouca visibilidade. (Entenda-se, é visto por pouca gente.) Ah, ok quanto à invisibilidade do cinema português. Quanto á invisibilidade específica do cinema que poderia preocupar a classe política, julgo que a explicação é outra: é que tal cinema simplesmente não existe.

domingo, fevereiro 19

Serviço público: sair do Facebook

Dizem que é assim: entrar no Facebook com o correo electrónico e password habitual.

Ir  para https://ssl.facebook.com/help/contact.php?show_form=delete_account

ou

www.facebook.com/help/contact.php?show_form=delete_account

Aceitar e seguir o diálogo.

Depois, esperar 15 dias.

Detalhes aqui.

quinta-feira, janeiro 19

Navios

Está na natureza humana salpicar de humor até os aspectos mais trágicos da vida. O terrível desastre do Costa Concordia ressuscita na net a citação atribuída por alguns a Winston Churchill:

There are 3 things I like about being on an Italian cruise ship. First, their cuisine is unsurpassed. Second, their service is superb. And then, in time of emergency, there is none of this nonsense about women and children first.

Mas é mais credível que se trate de uma tirada do Noel Coward, em registo mais ácido se possível:


I only travel on Italian ships; in the event of sinking, there’s none of that ‘women and children first’ nonsense!

Não sei se os italianos eram merecedores da piada. O último dos grandes naufrágios, antes da era do jacto, pertenceu ao transatlântico italiano Andrea Doria, com uma operação de salvamento competente e um custo em vidas moderado. A capa da Life, de 6 de Agosto de 1956, mostra o Andrea Doria visto do Île de France, a bordo do qual se encontrava o grande fotógrafo Loomis Dean. Dean fixou instantâneos de muitas celebridades do espectáculo e da moda. Entre elas o mordaz Noel Coward.

domingo, janeiro 1

Um guião esgotado

Com as mudanças de governo recentes em Portugal e em Espanha, volta ao palco a encenação cansativa de uma novela baseada na cultura da irresponsabilização, na desfaçatez com que todos mentem e no desvalor das etiquetas que os partidos colam a si próprios.

O enredo é mais ou menos estável: em cena estão dois partidos, cujos nomes têm um significado escorregadio e equívoco e por isso vamos designar simplesmente por A e B. O partido com etiqueta A é substituido por outro com a etiqueta B. Tomada a posse, B descobre um défice ou uns buracões muito maiores do que o previsto e desata a anunciar que tem muita pena mas não pode deixar de fazer umas maldades de que em campanha tinha prometido abster-se. Os figurões de A aproveitam para pôr a boca no trombone para desancar nos B. Com toda a lata e falta de vergonha, os que alegremente contribuiram para arruinar a situação com uma gestão que bondosamente podemos chamar de inepta, criticam os recém-chegados dizendo que assim não se consegue recuperar a economia, que as medidas são necessárias mas não são bem aquelas. O cidadão-espectador não sabe com quem há-de indispor-se mais. Por um lado parece incrível que não se soubesse o resultado das contas e que ele depois surja por milagre em tão pouco tempo. Parece haver iniciativas que deveriam ter precedência e ficam por tomar. Por outro, os derrotados não conseguem explicar porque é que o seu programa, que tiveram oportunidade de aplicar uns largos anos, não permitiu caminhar para a resolução dos problemas mas antes pelo contrário, e ainda por cima na etapa final dos seus governos enveredaram pelas políticas mais próprias dos B.

Esta coreografia lamentável é acompanhada em fundo por um coro que, contraditoriamente, entoa uma melodia da amnésia: estamos numa fossa mas não há culpados de nada, não vá alguma coisa cair-nos em cima. A responsabilidade quer-se colectiva, como recomendam os discursos redondos de algumas das nossas figurinhas públicas.

Em Espanha a tontice chega ao ponto em que o novo governo condecora ministros do anterior. Com a atribuição do colar da ordem de Isabel a Católica a Zapatero (o governante que por conveniência política consolidou a fragmentação do país e hostilizou abertamente a Igreja, enquanto criava essa inutilidade oportunista chamada Aliança de Civilizações) nem se percebe se estamos perante uma gaffe ou uma traquinice humorística. Como refere com graça um comentador no Libertad Digital, um paralelo apropriado seria condecorar o conde Drácula com um crucifixo e uma coroa de alhos.